segunda-feira, 21 de dezembro de 2009

Nostalgia pré-natalícia

Súbita canção


No obscuro desejo,
no incerto silêncio,
nos vagares repetidos,
na súbita canção

que nasce como a sombra
do dia agonizante,
quando empalidece
o exterior das coisas,

e quando não se sabe
se por dentro adormecem
ou vacilam, e quando
se prefere não chegar

a sabê-lo, a não ser,
pressentindo-as, ainda
um momento, na aresta
indizível do lusco-fusco.


Vasco da Graça Moura

sexta-feira, 18 de dezembro de 2009

Epístola


Não irei mais longe, Gherardo.Não te acompanho mais porque o trabalho urge e eu sou um homem velho. Sou um homem velho, Gherardo.Às vezes, quando te entregas mais à ternura,chegas a chamar-me teu pai. Mas eu não tenho filhos.Nunca encontrei mulher tão bela como as minhas figuras de pedra,mulher que ficasse horas imóvel sem falar,como coisa necessária que não precisa de agir para ser,e nos faz esquecer que o tempo passa porque está sempre presente.Mulher que se deixe olhar sem sorrir nem corarporque compreendeu que a beleza é qualquer coisa de grave.As mulheres de pedra são mais castas que as outras,e mais fiéis, porém, são estéreis.Não há fenda por onde se possa introduzir nelas o prazer,a morte, ou a semente de uma criança,e por isso elas são menos frágeis.Por vezes quebram-se e em cada pedaço de mármorefica contida a sua beleza inteira, como Deusque está em todas as coisas,mas nada de estranho entra nelas que dilate o seu coração.Os seres imperfeitos agitam-se e acasalam-se para se completarem,mas as coisas só belas são solitárias como a dor humana.

Gherardo, não tenho filhos.Eu bem sei que a maioria dos homens não tem propriamente um filho:têm Tito, ou Caio, ou Pedro, e não é a mesma alegria.Se eu tivesse um filho,ele não se havia de parecer com a imagem que eu dele formaraantes de existir. Assim também as estátuas que façosão diferentes daquelas que comecei por sonhar.Mas Deus permite-se ser conscientemente criador.Se fosses meu filho, Gherardo, eu não te amaria mais,mas não teria que perguntar-me porquê.Toda a minha vida procurei respostas a perguntasque talvez não tenham resposta e perscrutei o mármorecomo se a verdade se encontrasse no coração das pedras,e espalhei as cores para pintar muralhascomo se se tratasse de fixar acordes sobre um enorme silêncio.Tudo se cala, sabes, até a nossa alma —ou então somos nós que não ouvimos.

Assim, tu partes.Na minha idade já não se dá importância a uma separação,mesmo que definitiva. Eu bem sei que os seres que amamos e que nos amam maisse vão separando insensivelmente de nós a cada momento que passa.É também deste modo que se vão separando de si próprios.Estás sentado sobre essa pedra e julgas-te ainda aí,mas o teu ser, voltado para o futuro, não adere mais ao que foi a tua vida,e a tua ausência já começou. É certo que compreendoque tudo isto é ilusão, como o resto, e que o futuro não existe.Os homens que inventaram o tempo,inventaram por contraste a eternidade, mas a negação do tempoé tão vã como ele próprio. Não há nem passado nem futuromas apenas uma série de presentes sucessivos,um caminho perpetuamente destruído e continuadoonde todos vamos avançando.

Estás sentado, Gherardo,mas os teus pés estão assentes no solocom a inquietação de quem experimenta o caminho.Estás vestido com trajes do nosso século,que hão-de parecer feios ou simplesmente estranhos quando o século tiver passado pois as vestes não são mais que a caricatura do corpo.Vejo-te nu. Tenho o dom de ver através das roupas o irradiar do corpo,que é como os santos vêem as almas, segundo penso.É um suplício quando são feios,mas é um outro suplício quando são belos,dessa beleza frágil que a vida e o tempo atacam por todos os ladose acabarão por tomar-te,mas neste momento és dono dela e tua será na abóbada da igrejaonde pintei a tua imagem. Mesmo que um dia o teu espelho te não mostre mais que um retrato deformado onde não ouses reconhecer-te, existirá sempre noutro sítio o reflexo imóvel de ti.E desse modo imobilizarei a tua alma também.

Tu já não me amas.
Se consentes em ouvir-me durante uma hora
é porque somos sempre indulgentes com aqueles que vamos deixar.
Ligaste-me e agora desligas-me.Não te censuro, Gherardo.
O amor de alguém é um presente tão inesperado e tão pouco merecido que devemos espantar-nos que não no-lo retirem mais cedo.Não estou inquieto por aqueles que ainda não conheces,ao encontro de quem vais e que porventura te esperam:aquele que eles vão conhecer será diferente daquele que eu julguei conhecer e creio amar.Não se possui ninguém (mesmo os que pecam não o conseguem) e, sendo a arte a única forma de posse verdadeira,o que importa é recriar um ser e não prendê-lo.

Gherardo, não te enganes sobre as minhas lágrimas:vale mais que os que amamos partam quando ainda conseguimos chorá-los.Se ficasses, talvez a tua presença, ao sobrepor-se-lhe,enfraquecesse a imagem que me importa conservar dela.Tal como as tuas vestes não são mais que o invólucro do teu corpo,assim tu também não és mais para mimdo que o invólucro de um outro que extraí de ti e que te vai sobreviver.

Gherardo, tu és agora mais belo que tu mesmo.Só se possuem eternamente os amigos de quem nos separamos.»

Marguerite Yourcenar

“O tempo esse grande escultor”
trad. helena vaz da silva
Ao G.

Natureza
















Copenhaga tem razão...só espero que a demonstre.

quarta-feira, 16 de dezembro de 2009

De noite às vezes


La nuit n'est jamais complète
Il y a toujours
puisque je le dis
puisque je l'affirme
au bout du chemin
une fenêtre ouverte
une fenêtre éclairée
[...]

Paul Éluard

A noite nunca é completa
Há sempre
pois assim o afirmo assim o digo
no fim do caminho
uma janela aberta
uma janela iluminada

(tradução de Amélia Pais)
____________________________
http://barcosflores.blogspot.com/
http://cristalina.multiply.com/

DE volta

quinta-feira, 10 de dezembro de 2009

Em Dezembro



Não conheço ofensas mas apenas opressores
não calco a dor dos outros mas cimento a minha
soletro a linguagem das chuvas negras de Novembro, recebendo-as com o melhor sorriso de Maio
Apalavro as minhas solidões e nelas despejo a cinza do meu último cigarro
E coro de prazer pelo som mais lindo do povoado
Desafio as evidências
E amarro ao tempo as cores do meu tinteiro
Eu sei que o tempo fez a sua obra
Deixou passar o breu pelas minhas vestes
calou o vento suão na minha face de homem incompleto
despiu-me de néon e lantejoulas
e feriu-me de morte, a mais fiel companheira da vida

Não sei por onde estou a caminhar
Só vejo fantasmas ignotos e acres -
o pó de palco que sinto no meu chão
é a opereta da tarde mais manhã de todas as que vivi até agora,
aquela que faz da noite companhia e da boémia um destino,
perto, tão perto da porta esquerda do meu sombrio coração...


Suite et FIN...

quarta-feira, 9 de dezembro de 2009


Sou a que no mundo anda perdida
Eu sou a que na vida não tem norte,
Sou a irmã do Sonho, e desta sorte
Sou a crucificada, a dolorida...

Sombra de névoa tênue e esvaecida
E que o destino amargo, triste e forte,
Impele brutalmente para a morte;
Alma de luto sempre incompreendida!

Sou aquela que passa e ninguém vê.....
Sou a que chamam triste sem o ser...
Sou a que chora sem saber por quê...

Sou talvez a visão que Alguém sonhou
Alguém que veio ao mundo pra me ver
E que nunca na vida me encontrou!

(Florbela Espanca)

domingo, 6 de dezembro de 2009

Olheiro







Meus olhos são uns olhos.
E é com esses olhos uns
que eu vejo no mundo escolhos
onde outros, com outros olhos,
não vêem escolhos nenhuns.

Quem diz escolhos diz flores.
De tudo o mesmo se diz.
Onde uns vêem luto e dores
uns outros descobrem cores
do mais formoso matiz.

Nas ruas ou nas estradas
onde passa tanta gente,
uns vêem pedras pisadas,
mas outros, gnomos e fadas
num halo resplandecente.

Inútil seguir vizinhos,
querer ser depois ou ser antes.
Cada um é seus caminhos.
Onde Sancho vê moinhos
D. Quixote vê gigantes.

Vê moinhos? São moinhos.
Vê gigantes? São gigantes.

António Gedeão

sábado, 5 de dezembro de 2009

Nunca me esqueci de ti



Estou frágil como as asas de uma vida...
Tenho uma mão cheia de nada e outra de coisa nenhuma - e tenho o mundo inteiro à minha cabeceira.
À tua espera.

Porque, sabes, nunca, nunca me esqueci de ti...

A menina dos fósforos


Hans Christian Andersen - 1805-2005



Estava muito frio, a neve caía e já estava começando a escurecer. Era a noite do último dia do ano. Uma menina descalça e sem agasalho andava pelas ruas, no frio e no escuro. Quando atravessou correndo para fugir dos carros, a menina perdeu os chinelos que tinham sido da mãe e eram grandes demais. Um ela não achou mais e um garoto levou o outro, dizendo que ia usar como berço quando tivesse um filho.
A menina já estava com os pés roxos de frio. Tinha um pacotinho de fósforos na mão e outro no avental velho. Naquele dia não tinha conseguido vender nada e estava sem um tostão. Com frio e com fome, ela andava pelas ruas morrendo de medo. A neve caía no cabelo cacheado, mas ela não podia pensar nem no cabelo nem no frio. As casas estavam iluminadas e havia por toda parte um cheirinho gostoso de assado de ano novo. Era nisso que ela pensava.
Num cantinho entre duas casas, ela se encolheu toda, mas continuava sentindo muito frio. Voltar para casa, nem pensar: sem dinheiro, sem ter vendido nada, era certo o castigo do pai. Além do mais, a casa deles também era muito fria, sem forro e com o telhado cheio de furos e emendas, por onde o vento entrava assobiando.
Com as mãos geladas, pensou em acender um fósforo. Conseguiu. A chama pequenina parecia uma vela na concha da mão. A menina se imaginou diante de uma lareira enorme com o fogo esquentando tudo e ela também. Mas logo a chama apagou e a lareira sumiu. Ela só ficou com o fósforo queimando na mão.
Acendeu outro que, brilhando, fez a parede ficar transparente. Ela viu a casa por dentro: a mesa posta, a toalha branca, a louça linda. O assado, o recheio, as frutas. Não é que o assado, com o garfo e faca espetados, pulou do prato e veio correndo até onde ela estava?Mas o fósforo apagou e ela só viu a parede grossa e úmida.
Acendeu mais um fósforo e se viu junto de uma belíssima árvore de Natal. Maior do que uma que tinha visto antes. Velinhas e figuras coloridas enchiam os galhos verdes. A menina esticou o braço e... o fósforo apagou. Mas as velinhas começaram a subir, a subir e ela viu que eram estrelas. Uma virou estrela cadente e riscou o céu.
-Alguém deve ter morrido. A avó - única pessoa que tinha gostado dela de verdade e que já tinha morrido - sempre dizia: "Quando uma estrela caí, é sinal de que uma alma subiu para o céu".
A menina riscou mais um fósforo e, no meio do clarão, viu a avó tão boa e tão carinhosa, contente como nunca.
-Vovó, me leva embora! Sei que você não vai mais estar aqui quando o fósforo apagar. Você vai desaparecer como a lareira, o assado e a árvore de Natal.
E foi acendendo os outros fósforos para que a avó não sumisse. Foi tanta luz que parecia dia. E a avó ali, tão bonita, tão bonita. Pegou a menina no colo e voou com ela para onde não fazia frio e não havia fome nem dor. Foram para junto de Deus.
De manhãzinha, as pessoas viram no canto entre duas casas uma menina corada e sorrindo. Estava morta. Tinha morrido de frio na última noite do ano. Nas mãos, uma caixa de fósforos queimados.
-Ela tentou se esquentar, coitadinha. Ninguém podia adivinhar tudo o que ela tinha visto, o brilho, a avó, as alegrias de um ano novo.

sexta-feira, 4 de dezembro de 2009

Irreal


Amor











Para o P. e a C.
q
u

e sei que vão gostar e que são os meus maiores amigos, amores e tudo.

quinta-feira, 3 de dezembro de 2009

Estás aí ou não?


Saiba mais em:



Não Falte! Confirme a sua presença para marchacombateapobreza@gmail.com

Um homem chamado Criança


Uma questão de arrumação (mayflower revisitado)


R., escreveu no seu belo blog, agora a visitar Veneza:


«Se ontem viram uma pessoa dar uma lição de moral ao arrumador que está em frente ao Beauty Stetik § Spa da Avenida Calouste Gulbenkian, ali em frente ao Mayflower... era eu!
R. tem hora marcada. R. precisa estacionar. R. vê mil sítios. Tenta estacionar. Quando está a iniciar a manobra aparece-lhe o arrumador a bater no vidro e a dar indicações. R. vai embora. R. inicia nova manobra noutro sítio. Arrumador bate-lhe ao vidro. A saga repete-se três vezes. R. está a atrasar-se. Faz a manobra mantendo o olhar SEMPRE desviado do arrumador. R. estaciona que é uma beleza. R. vai pôr moedinha. R. vai pôr papelinho ao carro. R. fecha a porta e está o arrumador em frente a si, com ar de "tudo me deve e ninguém me paga".
R. Olhe, desculpe! Importa-se de me explicar qual é a lógica de estar a arrumar carros num sítio onde os lugares estão marcados e já temos de pagar estacionamento?!
Arrumador (A.) Fazer pela vida!
R. Pela vida, ou pelo vício?!
A. Do que é que tás a falar?
R. Oh homem, diga-me lá... você ainda é novo, não é?
A. Mais ou menos.
R. E tem família?
A. Não querem saber de mim!
R. Ah... e acha que é vindo para aqui arrumar carros que os faz gostarem mais de si?!
A. Mais vale isto do que andar a roubar.
R. Pois, lá isso é verdade. Mas isso é a lógica do "antes rico e com saúde que pobre e doentinho"! Já procurou emprego?
A. Às vezes procuro.
R. Então mas isso não pode ser só às vezes, homem. Tem de ser sempre. Tem de tomar um banhinho, vestir uma roupinha lavadinha e ir à luta.
A. Pois, tem razão.
R. Pois tenho. Olhe lá, você já comeu hoje?
A. Não.
R. Então tome lá (não foi muito, que a crise chega a todos).
A. Obrigada. Olha, sabes que a Câmara vai dar uma licença a quem quiser especializar-se em arrumador. Pagas 20 € por ano e tens a licença.
R. Ai... mau! Então mas não tínhamos chegado a acordo que ia procurar outra vida?!
A. Pois... é só se não der!
R. Olhe, agora tenho mesmo de ir. Veja lá se vai mesmo gastar isso numa refeição quentinha. Se eu sei que junta os trocos para ir à droga, olhe que nunca mais lhe dou nadinha. Sabe que a vida tem muitos cruzamentos. Lá porque errámos a direcção uma vez, não há nada que nos impeça de voltar atrás e refazer o caminho.
A. Posso dizer-te uma coisa: às vezes as pessoas dizem "olha aquele quer uma vida fácil", sem saberem que a vida dele até é mas é muito difícil... Feliz Natal para ti, está bem!
R. Feliz Natal também para si.
...
R. E nada de riscar os carros a quem não dá moeda.
A. Achas?!
R. Vá... Fique bem!


Sabes, R., já isso vivi, mesmo...

E eles não há meio de ali saírem e fazerem mesmo pela VIDA!

Nocturno lusitano


Todas as noites, antes de adormecermos, damos corda aos sonhos.


MJF

quarta-feira, 2 de dezembro de 2009

The Queen Meryl






Esta mulher transfigura-se, aprende sotaques, chora a rir e ri a chorar.
Um caleidoscópio de emoções e de naturalidade a que dela irrompe em cada pedaço de personagem que compõe.
Vejam-na em Julie and Julia.
SOBERBA...

Sonata em efe



Um homem chega ao restaurante, senta-se e, acenando com o braço, diz:
>> - Faz favor: frango frito, favas, farinheira...
>> - Acompanhado com quê?
>> - Feijão.
>> - Deseja beber alguma coisa?
>> - Fanta fresca.
>> - Um pãozinho antes da refeição?
>> - Fatias fininhas.
O empregado anota o pedido, já meio intrigado: "o tipo fala tudo com F's!"
Depois do homem terminar a refeição, o empregado pergunta-lhe:
>> - Vai querer sobremesa?
>> - Fruta.
>> - Tem alguma preferência?
>> - Figos.
Depois da sobremesa, o empregado:
>> - Deseja um café?
>> - Forte. Fervendo.
Quando o cliente termina o café:
>> - Então, como estava o cafézinho?
>> - Frio, fraco. Faltou filtrar formiguinha flutuando.
Aí o empregado pensa: "Vamos ver até aonde é que ele vai".
>> - Como é que o senhor se chama?
>> - Fernando Fagundes Faria Filho.
>> - De onde vem?
>> - Faro.
>> - Trabalha?
>> - Fui ferreiro.
>> - Deixou o emprego?
>> - Fui forçado.
>> - Por quê?
>> - Faltou ferro.
>> - E o que é que fazia?
>> - Ferrolhos, ferraduras, facas... ferragens.
>> - Tem um clube favorito?
>> - Fui Famalicense.
>> - E deixou de ser porquê?
>> - Futebol feio , farta.
>> - Qual é o seu clube, agora?
>> - Farense.
>> - O senhor é casado?
>> - Fui.
>> - E sua esposa?
>> - Faleceu.
>> - De quê?
>> - Foram furúnculos, frieiras... ficou fraquinha... finou-se.
O empregado de mesa perde a calma:
>> - Olhe! Se você disser mais 10 palavras começadas com a letra F... não
paga a conta. Pronto!
>> - Formidável, fantástico. Foi fácil ficar freguês falando frases fixes.
O homem levanta-se e dirige-se para a saída, enquanto o empregado ainda
>> lança:
>> - Espere aí! Ainda falta uma!
O homem responde, sem se virar:
>> - Faltava.
NR - O filme é FAME. Por causa do F...

Em fila indiana