I'm Still Here, o suposto documentário sobre um actor desalinhado em "reinvenção criativa" já está nos cinemas dos Estados Unidos. Ontem, o seu realizador confirmou as suspeitas: é afinal uma ficção em registo de documentário. E assim se discute porque gostamos tanto de celebridades, da sua pretensa realidade e do género "mockumentary"
O mágico revelou o seu truque e a verdade está cá fora. Uma semana depois da estreia de I'm Still Here nas salas americanas e no dia em que o filme se estreou no Reino Unido, Casey Affleck revelou-se: o seu filme é mesmo um mockumentary, Joaquin Phoenix estava mesmo a criar com o cunhado realizador uma peça de performance art sobre um actor decadente que queria ser rapper. Retrato de uma cultura obcecada pelas celebridades, piada pouco private sobre os bastidores de Hollywood, atestado de uma cómica malaise século XXI.
"Nunca tive a intenção de enganar alguém. A ideia de um ‘engodo' nunca me passou pela cabeça", diz Affleck ao New York Times. Mas fez, como disse sexta-feira ao jornal, um exemplo de "cinema gonzo", o estilo inaugurado pela mescla de factos e ficção e uma pitada de subversão de Hunter S. Thompson. A ideia era documentar a queda de uma estrela, o seu desligamento da realidade, os ares de superioridade face aos outros, o Hades da celebridade. Uma das inspirações do realizador foi, adequadamente, Inferno, de Dante Alighieri. E frisa que Phoenix tem aqui "uma actuação extraordinária, a actuação da sua carreira".
Alguns críticos de cinema foram enganados, ainda que profusamente elogiosos quanto ao filme que viram, primeiro no Festival de Veneza, depois em Toronto e depois em visionamentos nos EUA: Roger Ebert, no Chicago Sun-Times, sentiu que o filme era "um documentário triste e doloroso cuja finalidade é pouco mais do que pregar mais um prego no caixão" de uma estrela perdida; Owen Gleiberman, da Entertainment Weekly, achou o "documentário fascinante e assustador", "uma peça artística de verité exploitation" que dava uma resposta "triste" à pergunta que muitos faziam desde 2008, quando Phoenix começou esta história no talk-show de David Letterman. Gleiberman retractava-se ontem no site da revista semanal, escrevendo em título sobre Phoenix: "Talvez ele seja um actor tão formidável quanto Brando."
Desde a conversa com Letterman - quando Phoenix não parecia o mesmo que foi nomeado para o Óscar de Melhor Actor em Walk The Line (2005) e em que deveria promover o seu filme mais recente, Two Lovers - que se perdia em silêncios. De aspecto desalinhado, anunciava a vontade de ser estrela de hip-hop. E especulava-se: o que teria acontecido ao filho de hippies baptizado como Leaf Phoenix, irmão do falecido actor River e da mulher de Casey Affleck, Rain? Depois, Affleck anunciava que ia documentar essa "reinvenção criativa" de Phoenix.
"Um dos grandes temas da nossa cultura é a ideia de celebridade e vê-las na sua ascensão e queda", explica Robert J. Thompson, do Centro Bleier para a Cultura Popular da Universidade de Syracuse. "Numa altura em que Lindsay Lohan é breaking news em todos os canais quando vai a tribunal, faz sentido que actores e realizadores queiram explorar isto. E o mockumentary é uma forma esteticamente adequada. É uma ideia natural. O facto de terem feito este filme diz-nos que há uma série de coisas interessantes a passar-se naquele mundo de Hollywood, faz-nos pensar na mistura entre realidade e não-realidade."
Até ontem, continuavam as perguntas. I'm Still Here é uma performance? Os vídeos no YouTube de pretensas actuações de Phoenix como rapper que acabavam mal eram parte disso? Affleck dizia, há semanas: "Não é um engodo."
Em Veneza, na conferência de imprensa que acompanhou a estreia do filme, foi parco nas palavras, estratégia que explicou ontem no New York Times. A ideia era "criar um espaço" em que se "acredita que o que está a acontecer é real". No festival, em que Phoenix apareceu já de barba feita e ar solar, Affleck falou da inspiração que foi Gus Van Sant (foi seu actor no deambulante Gerry) e negou que o seu "documentário" fosse um embuste.
Para Robert J. Thompson, a premissa apresentada para o filme era "plausível". Viu em directo a prestação inaugural de Phoenix frente a David Letterman e pensou, tal como o argumentista de humor João Quadros, que o P2 ouviu sobre o caso em Agosto, "que havia ali algo muito suspeito". "Se estivesse a ver aquilo em 1975 teria acreditado", diz o professor. Mas os tempos são outros. Ainda assim, o especialista em cultura popular considera que quem acreditou que I'm Still Here era um documentário não é "um papalvo". "Quantos actores vimos já a passar por isto? É todo um género [televisivo], os Behind the Music (Vh1), os E! True Hollywood Story (canal de cabo E!)..."
No fundo, esta é a altura certa para I'm Still Here. Vivemos numa época em que a obsessão pelas celebridades e o fascínio pela sua suposta "vida real" que passa nas televisões (seja em programas por eles produzidos, de "apanhados" ou de famosos em festas e passadeiras vermelhas) se juntam à ideia de acesso a tudo e todos, alimentada pelas câmaras e Internet omnipresentes. E depois há as séries de televisão que há uma década vêm a alimentar o regresso do mockumentary, de O Escritório ou Parks and Recreation ao mais recente e multi-premiado Uma Família Muito Moderna.
Desfeito o enigma, confirmadas algumas das mais escabrosas expectativas sobre o conteúdo do filme (em que sim, há sexo drogas e star system), Affleck confessa que uma das suas expectativas foi gorada. "Não pensei que a questão ‘real ou não' existisse depois de o filme ter sido visto na íntegra." De I'm Still Here, só uma imagem é "real": um pedaço de um filme feito com os irmãos Phoenix a actuar na rua em Los Angeles. Um outro suposto filme de família foi encenado. Takes e mais takes e uma imagem envelhecida graças a gravações sucessivas numa cassette VHS em que originalmente morava Paris, Texas.
O filme, que ainda não teve comprador para Portugal e por isso não tem data de estreia mas estará disponível em vídeo-on-demand na web a partir de dia 24, é então um pacote de que todos fazemos parte graças à globalização. "Andy Kaufman trabalhava na televisão, mas toda a obra dele transcendeu as fronteiras do meio. O filme [I'm Still Here] é apenas uma peça disto, houve Letterman e todas as reacções ao que foi posto no YouTube, a reacção ao filme quando ele saiu, mesmo a entrevista ao New York Times fazem parte disto", opina Thompson. Um capítulo, talvez o último: Phoenix estará quarta-feira, novamente, no Late Night With David Letterman. As himself.
UMA HISTÓRIA DE FAZ-DE-CONTA FABULOSA.
COMO SÓ O CINEMA, ESSE ETERNO E MARAVILHOSO INTRUJÃO, CONTA...