quinta-feira, 31 de dezembro de 2009
O último fôlego é dos poetas
O último dia do ano
não é o último dia do tempo.
Outros dias virão
e novas coxas e ventres te comunicarão o calor da vida.
Beijarás bocas, rasgarás papéis,
farás viagens e tantas celebrações
de aniversário, formatura, promoção, glória, doce morte com sinfonia e coral,
que o tempo ficará repleto e não ouvirás o clamor,
os irreparáveis uivos
do lobo, na solidão.
O último dia do tempo
não é o último dia de tudo.
Fica sempre uma franja de vida
onde se sentam dois homens.
Um homem e seu contrário,
uma mulher e seu pé,
um corpo e sua memória,
um olho e seu brilho,
uma voz e seu eco,
e quem sabe até se Deus...
Recebe com simplicidade este presente do acaso.
Mereceste viver mais um ano.
Desejarias viver sempre e esgotar a borra dos séculos.
Teu pai morreu, teu avô também.
Em ti mesmo muita coisa já expirou, outras espreitam a morte,
mas estás vivo. Ainda uma vez estás vivo,
e de copo na mão
esperas amanhecer.
O recurso de se embriagar.
O recurso da dança e do grito,
o recurso da bola colorida,
o recurso de Kant e da poesia,
todos eles... e nenhum resolve.
Surge a manhã de um novo ano.
As coisas estão limpas, ordenadas.
O corpo gasto renova-se em espuma.
Todos os sentidos alerta funcionam.
A boca está comendo vida.
A boca está entupida de vida.
A vida escorre da boca,
lambuza as mãos, a calçada.
A vida é gorda, oleosa, mortal, sub-reptícia.
ANDRADE, Carlos Drummond de
"A rosa do povo"
In: Poesia completa.. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 2002.
lembrado em http://antoniocicero.blogspot.com/2009/12/carlos-drummond-de-andrade-passagem-do.html
O último metro
Por isso, recordo Haydn e Sena, um dos nossos maiores.
A CRIAÇÃO, DE HAYDN
confiadamente compor-por mais dores que sofressem
enquanto humanos e como seres viventes-
tão jubilantes cânticos do criar do Mundo.
Era belo, era bom, era perfeito o Mundo.
É certo que o cantavam quando apenas criado,
e o par humano pisava sem pecado
o jardim paradisíaco.
Nós nem mesmo em momentos únicos,
raríssimos, epifânicos
-e não só por não crermos no pecado-,
não podemos.
Jorge de Sena
quarta-feira, 30 de dezembro de 2009
terça-feira, 29 de dezembro de 2009
A minha casa das histórias
domingo, 27 de dezembro de 2009
Á espera do novo...
Nem sempre foi assim
quando tudo entre nós ficava branco
tu passavas o tempo nas minhas mãos
a contar os barcos que saíam para o mar
e gostavas de imaginar outros horizontes
a vida está sempre a mudar, dizias-me,
e eu sabia que nada mais te poderia dar
além do quarto alugado onde dormíamos.
Alexandre de Castro
quinta-feira, 24 de dezembro de 2009
Que o Menino vos chegue são e salvo
Num meio-dia de fim de Primavera
Tive um sonho como uma fotografia.
Vi Jesus Cristo descer à terra.
Veio pela encosta de um monte
Tornado outra vez menino,
A correr e a rolar-se pela erva
E a arrancar flores para as deitar fora
E a rir de modo a ouvir-se de longe.
Tinha fugido do céu.
Era nosso demais para fingir
De segunda pessoa da Trindade.
No céu era tudo falso, tudo em desacordo
Com flores e árvores e pedras.
No céu tinha que estar sempre sério
E de vez em quando de se tornar outra vez
homem
E subir para a cruz, e estar sempre a morrer
Com uma coroa toda à roda de espinhos
E os pés espetados por um prego com cabeça,
E até com um trapo à roda da cintura
Com o primeiro fez que ninguém soubesse que
ele tinha fugido.
Com o segundo criou-se eternamente humano
e menino
Com o terceiro criou um Cristo eternamente
na cruz
E deixou-o pregado na cruz que há no céu
E serve de modelo às outras.
Depois fugiu para o Sol
E desceu pelo primeiro raio que apanhou.
Hoje vive na minha aldeia comigo.
É uma criança bonita de riso e natural.
Limpa o nariz ao braço direito,
Chapinha nas poças de água,
Colhe as flores e gosta delas e esquece-as.
Atira pedras aos burros,
Rouba a fruta dos pomares
E foge a chorar e a gritar dos cães.
E, porque sabe que elas não gostam
E que toda a gente acha graça,
Corre atrás das raparigas
Que vão em ranchos pelas estradas
Com as bilhas às cabeças
E levanta-lhes as saias.
A mim ensinou-me tudo.
Ensinou-me a olhar para as coisas.
Aponta-me todas as coisas que há nas flores.
Mostra-me como as pedras são engraçadas
Quando a gente as tem na mão
E olha devagar para elas.
(...)
terça-feira, 22 de dezembro de 2009
Esta terra é...
Esta terra é nossa - dizem.
Esta terra lembra o desalento do nada
a saudade do verde que se teima em querer durar na nossa vida
Falam de feridas abertas
onde a dor se acende e o vento morno nos embala
A irmã lua ainda dança
para a gente cantar
A mãe lua ainda chama
para a gente dançar...
E se quisermos dobrar a alma
e tecer a tristeza em toques de veludo e de urze despida,
estamos à vontade e à frente do tempo e dos tempos
Vale o cântico desta terra
a fonte que não seca
o xisto que constrói pontes dentro de nós
Onde quer que eu vá
em toda a parte
onde quer que o sonho e a fadiga telúrica me leve,
hei-de lembrar-me de ti.
Terra minha. Terra nossa.
(levemente influenciado pelas palavras de Mafalda Veiga e pelas melhores intenções de Copenhaga)
Conto de Natal
E ali vinha de mais uma dessas romarias, bem escusadas se o mundo fosse de outra maneira. Muito embora trouxesse dez reis no bolso e o bornal cheio, o certo é que já lhe custava arrastar as pernas. Derreadinho! Podia, realmente, ter ficado em Loivos. Dormia, e no dia seguinte, de manhãzinha, punha-se a caminho. Mas quê! Metera-se-lhe na cabeça consoar à manjedoira nativa... E a verdade é que nem casa nem família o esperavam. Todo o calor possível seria o do forno do povo, permanentemente escancarado à pobreza.
Em todo o caso sempre era passar a noite santa debaixo de telhas conhecidas, na modorra de um borralho de estevas e giestas familiares, a respirar o perfume a pão fresco da última cozedura... Essa regalia ao menos dava-a Lourosa aos desamparados. Encher-lhes a barriga, não. Agora albergar o corpo e matar o sono naquele santuário colectivo da fome, podiam. O problema estava em chegar lá. O raio da serra nunca mais acabava, e sentia-se cansado. Setenta e cinco anos, parecendo que não, é um grande carrego. Ainda por cima atrasara-se na jornada em Feitais. Dera uma volta ao lugarejo, as bichas pegaram, a coisa começou a render, e esqueceu-se das horas. Quando foi a dar conta passava das quatro. E, como anoitecia cedo não havia outro remédio senão ir agora a mata-cavalos, a correr contra o tempo e contra a idade, com o coração a refilar. Aflito, batia-lhe na taipa do peito, a pedir misericórdia. Tivesse paciência. O remédio era andar para diante. E o pior de tudo é que começava a nevar! Pela amostra, parecia coisa ligeira. Mas vamos ao caso que pegasse a valer? Bem, um pobre já está acostumado a quantas tropelias a sorte quer. Ele então, se fosse a queixar-se! Cada desconsideração do destino! Valia-lhe o bom feitio. Viesse o que viesse, recebia tudo com a mesma cara. Aborrecer-se para quê?! Não lucrava nada! Chamavam-lhe filósofo... Areias, queriam dizer. Importava-se lá.
E caía, o algodão em rama! Caía, sim senhor! Bonito! Felizmente que a Senhora dos Prazeres ficava perto. Se a brincadeira continuasse, olha, dormia no cabido! O que é, sendo assim, adeus noite de Natal em Lourosa...
Apressou mais o passo, fez ouvidos de mercador à fadiga, e foi rompendo a chuva de pétalas. Rico panorama!
Com patorras de elefante e branco como um moleiro, ao cabo de meia hora de caminho chegou ao adro da ermida. À volta não se enxergava um palmo sequer de chão descoberto. Caiados, os penedos lembravam penitentes.
Não havia que ver: nem pensar noutro pouso. E dar graças!
Entrou no alpendre, encostou o pau à parede, arreou o alforge, sacudiu-se, e só então reparou que a porta da capela estava apenas encostada. Ou fora esquecimento, ou alguma alma pecadora forçara a fechadura.
Vá lá! Do mal o menos. Em caso de necessidade, podia entrar e abrigar-se dentro. Assunto a resolver na ocasião devida... Para já, a fogueira que ia fazer tinha de ser cá fora. O diabo era arranjar lenha.
Saiu, apanhou um braçado de urgueiras, voltou, e tentou acendê-las. Mas estavam verdes e húmidas, e o lume, depois de um clarão animador, apagou-se. Recomeçou três vezes, e três vezes o mesmo insucesso. Mau! Gastar os fósforos todos é que não.
Num começo de angústia, porque o ar da montanha tolhia e começava a escurecer, lembrou-se de ir à sacristia ver se encontrava um bocado de papel.
Descobriu, realmente, um jornal a forrar um gavetão, e já mais sossegado, e também agradecido ao céu por aquela ajuda, olhou o altar.
Quase invisível na penumbra, com o divino filho ao colo, a Mãe de Deus parecia sorrir-lhe. Boas festas! - desejou-lhe então, a sorrir também. Contente daquela palavra que lhe saíra da boca sem saber como, voltou-se e deu com o andor da procissão arrumado a um canto. E teve outra ideia. Era um abuso, evidentemente, mas paciência. Lá morrer de frio, isso vírgula! Ia escavacar o ar canho. Olarila! Na altura da romaria que arranjassem um novo.
Daí a pouco, envolvido pela negrura da noite, o coberto, não desfazendo, desafiava qualquer lareira afortunada. A madeira seca do palanquim ardia que regalava; só de cheirar o naco de presunto que recebera em Carvas crescia água na boca; que mais faltava?
Enxuto e quente, o Garrinchas dispôs-se então a cear. Tirou a navalha do bolso, cortou um pedaço de broa e uma fatia de febra e sentou-se. Mas antes da primeira bocada a alma deu-lhe um rebate e, por descargo de consciência, ergueu-se e chegou-se à entrada da capela. O clarão do lume batia em cheio na talha dourada e enchia depois a casa toda. É servida?
A Santa pareceu sorrir-lhe outra vez, e o menino também.
E o Garrinchas, diante daquele acolhimento cada vez mais cordial, não esteve com meias medidas: entrou, dirigiu-se ao altar, pegou na imagem e trouxe-a para junto da fogueira.
- Consoamos aqui os três - disse, com a pureza e a ironia de um patriarca. – A Senhora faz de quem é; o pequeno a mesma coisa; e eu, embora indigno, faço de S. José.
22 de Dezembro
Tenho Saudades do Calor ó Mãe
Ó mãe que me cortas o cabelo — o meu cabelo
Adorna-te muito mais do que os anéis
Dá-me um pouco do teu corpo como herança
Uma porção do teu corpo glorioso — não o que já tenho —
O que em ti já contempla o que os santos vêem nos céus
Dá-me o pão do céu porque morro
Faminto, morro à míngua do alto
Tenho saudades dos caminhos quando me deixas
Em casa. Padeço tanto
Penso tanto
Canto tão alto quando calculo os corpos celestes
Ó infinita ó infinita mãe
Amizade
Uma criança muito suja atira pedras a um cão.
O cão não foge. Esquiva-se e vem até junto da criança
para lhe lamber o rosto.
Há, depois, um abraço apertado, de compreensão e
de amizade. E lado a lado, com a mãozinha muito
suja no pescoço felpudo, lá vão, pela rua estreita,
em direcção ao sol.
segunda-feira, 21 de dezembro de 2009
Súbita canção
No obscuro desejo,
no incerto silêncio,
nos vagares repetidos,
na súbita canção
que nasce como a sombra
do dia agonizante,
quando empalidece
o exterior das coisas,
e quando não se sabe
se por dentro adormecem
ou vacilam, e quando
se prefere não chegar
a sabê-lo, a não ser,
pressentindo-as, ainda
um momento, na aresta
indizível do lusco-fusco.
Vasco da Graça Moura
sexta-feira, 18 de dezembro de 2009
Epístola
Gherardo, não tenho filhos.Eu bem sei que a maioria dos homens não tem propriamente um filho:têm Tito, ou Caio, ou Pedro, e não é a mesma alegria.Se eu tivesse um filho,ele não se havia de parecer com a imagem que eu dele formaraantes de existir. Assim também as estátuas que façosão diferentes daquelas que comecei por sonhar.Mas Deus permite-se ser conscientemente criador.Se fosses meu filho, Gherardo, eu não te amaria mais,mas não teria que perguntar-me porquê.Toda a minha vida procurei respostas a perguntasque talvez não tenham resposta e perscrutei o mármorecomo se a verdade se encontrasse no coração das pedras,e espalhei as cores para pintar muralhascomo se se tratasse de fixar acordes sobre um enorme silêncio.Tudo se cala, sabes, até a nossa alma —ou então somos nós que não ouvimos.
Assim, tu partes.Na minha idade já não se dá importância a uma separação,mesmo que definitiva. Eu bem sei que os seres que amamos e que nos amam maisse vão separando insensivelmente de nós a cada momento que passa.É também deste modo que se vão separando de si próprios.Estás sentado sobre essa pedra e julgas-te ainda aí,mas o teu ser, voltado para o futuro, não adere mais ao que foi a tua vida,e a tua ausência já começou. É certo que compreendoque tudo isto é ilusão, como o resto, e que o futuro não existe.Os homens que inventaram o tempo,inventaram por contraste a eternidade, mas a negação do tempoé tão vã como ele próprio. Não há nem passado nem futuromas apenas uma série de presentes sucessivos,um caminho perpetuamente destruído e continuadoonde todos vamos avançando.
Estás sentado, Gherardo,mas os teus pés estão assentes no solocom a inquietação de quem experimenta o caminho.Estás vestido com trajes do nosso século,que hão-de parecer feios ou simplesmente estranhos quando o século tiver passado pois as vestes não são mais que a caricatura do corpo.Vejo-te nu. Tenho o dom de ver através das roupas o irradiar do corpo,que é como os santos vêem as almas, segundo penso.É um suplício quando são feios,mas é um outro suplício quando são belos,dessa beleza frágil que a vida e o tempo atacam por todos os ladose acabarão por tomar-te,mas neste momento és dono dela e tua será na abóbada da igrejaonde pintei a tua imagem. Mesmo que um dia o teu espelho te não mostre mais que um retrato deformado onde não ouses reconhecer-te, existirá sempre noutro sítio o reflexo imóvel de ti.E desse modo imobilizarei a tua alma também.
Tu já não me amas.
Gherardo, não te enganes sobre as minhas lágrimas:vale mais que os que amamos partam quando ainda conseguimos chorá-los.Se ficasses, talvez a tua presença, ao sobrepor-se-lhe,enfraquecesse a imagem que me importa conservar dela.Tal como as tuas vestes não são mais que o invólucro do teu corpo,assim tu também não és mais para mimdo que o invólucro de um outro que extraí de ti e que te vai sobreviver.
Gherardo, tu és agora mais belo que tu mesmo.Só se possuem eternamente os amigos de quem nos separamos.»
Marguerite Yourcenar
quarta-feira, 16 de dezembro de 2009
De noite às vezes
Il y a toujours
puisque je le dis
puisque je l'affirme
au bout du chemin
une fenêtre ouverte
une fenêtre éclairée
[...]
Paul Éluard
A noite nunca é completa
Há sempre
pois assim o afirmo assim o digo
no fim do caminho
uma janela aberta
uma janela iluminada
(tradução de Amélia Pais)
____________________________
http://barcosflores.blogspot.com/
http://cristalina.multiply.com/
quinta-feira, 10 de dezembro de 2009
Em Dezembro
Não conheço ofensas mas apenas opressores
não calco a dor dos outros mas cimento a minha
soletro a linguagem das chuvas negras de Novembro, recebendo-as com o melhor sorriso de Maio
Apalavro as minhas solidões e nelas despejo a cinza do meu último cigarro
E coro de prazer pelo som mais lindo do povoado
Desafio as evidências
E amarro ao tempo as cores do meu tinteiro
Eu sei que o tempo fez a sua obra
Deixou passar o breu pelas minhas vestes
calou o vento suão na minha face de homem incompleto
despiu-me de néon e lantejoulas
e feriu-me de morte, a mais fiel companheira da vida
Não sei por onde estou a caminhar
Só vejo fantasmas ignotos e acres -
o pó de palco que sinto no meu chão
é a opereta da tarde mais manhã de todas as que vivi até agora,
aquela que faz da noite companhia e da boémia um destino,
perto, tão perto da porta esquerda do meu sombrio coração...
Suite et FIN...
quarta-feira, 9 de dezembro de 2009
Sou a que no mundo anda perdida
Eu sou a que na vida não tem norte,
Sou a irmã do Sonho, e desta sorte
Sou a crucificada, a dolorida...
Sombra de névoa tênue e esvaecida
E que o destino amargo, triste e forte,
Impele brutalmente para a morte;
Alma de luto sempre incompreendida!
Sou aquela que passa e ninguém vê.....
Sou a que chamam triste sem o ser...
Sou a que chora sem saber por quê...
Sou talvez a visão que Alguém sonhou
Alguém que veio ao mundo pra me ver
E que nunca na vida me encontrou!
(Florbela Espanca)
domingo, 6 de dezembro de 2009
Olheiro
E é com esses olhos uns
que eu vejo no mundo escolhos
onde outros, com outros olhos,
não vêem escolhos nenhuns.
Quem diz escolhos diz flores.
De tudo o mesmo se diz.
Onde uns vêem luto e dores
uns outros descobrem cores
do mais formoso matiz.
Nas ruas ou nas estradas
onde passa tanta gente,
uns vêem pedras pisadas,
mas outros, gnomos e fadas
num halo resplandecente.
Inútil seguir vizinhos,
querer ser depois ou ser antes.
Cada um é seus caminhos.
Onde Sancho vê moinhos
D. Quixote vê gigantes.
Vê moinhos? São moinhos.
Vê gigantes? São gigantes.
António Gedeão
sábado, 5 de dezembro de 2009
Nunca me esqueci de ti
Estou frágil como as asas de uma vida...
Tenho uma mão cheia de nada e outra de coisa nenhuma - e tenho o mundo inteiro à minha cabeceira.
À tua espera.
Porque, sabes, nunca, nunca me esqueci de ti...
A menina dos fósforos
Estava muito frio, a neve caía e já estava começando a escurecer. Era a noite do último dia do ano. Uma menina descalça e sem agasalho andava pelas ruas, no frio e no escuro. Quando atravessou correndo para fugir dos carros, a menina perdeu os chinelos que tinham sido da mãe e eram grandes demais. Um ela não achou mais e um garoto levou o outro, dizendo que ia usar como berço quando tivesse um filho.
A menina já estava com os pés roxos de frio. Tinha um pacotinho de fósforos na mão e outro no avental velho. Naquele dia não tinha conseguido vender nada e estava sem um tostão. Com frio e com fome, ela andava pelas ruas morrendo de medo. A neve caía no cabelo cacheado, mas ela não podia pensar nem no cabelo nem no frio. As casas estavam iluminadas e havia por toda parte um cheirinho gostoso de assado de ano novo. Era nisso que ela pensava.
Num cantinho entre duas casas, ela se encolheu toda, mas continuava sentindo muito frio. Voltar para casa, nem pensar: sem dinheiro, sem ter vendido nada, era certo o castigo do pai. Além do mais, a casa deles também era muito fria, sem forro e com o telhado cheio de furos e emendas, por onde o vento entrava assobiando.
Com as mãos geladas, pensou em acender um fósforo. Conseguiu. A chama pequenina parecia uma vela na concha da mão. A menina se imaginou diante de uma lareira enorme com o fogo esquentando tudo e ela também. Mas logo a chama apagou e a lareira sumiu. Ela só ficou com o fósforo queimando na mão.
Acendeu outro que, brilhando, fez a parede ficar transparente. Ela viu a casa por dentro: a mesa posta, a toalha branca, a louça linda. O assado, o recheio, as frutas. Não é que o assado, com o garfo e faca espetados, pulou do prato e veio correndo até onde ela estava?Mas o fósforo apagou e ela só viu a parede grossa e úmida.
Acendeu mais um fósforo e se viu junto de uma belíssima árvore de Natal. Maior do que uma que tinha visto antes. Velinhas e figuras coloridas enchiam os galhos verdes. A menina esticou o braço e... o fósforo apagou. Mas as velinhas começaram a subir, a subir e ela viu que eram estrelas. Uma virou estrela cadente e riscou o céu.
-Alguém deve ter morrido. A avó - única pessoa que tinha gostado dela de verdade e que já tinha morrido - sempre dizia: "Quando uma estrela caí, é sinal de que uma alma subiu para o céu".
A menina riscou mais um fósforo e, no meio do clarão, viu a avó tão boa e tão carinhosa, contente como nunca.
-Vovó, me leva embora! Sei que você não vai mais estar aqui quando o fósforo apagar. Você vai desaparecer como a lareira, o assado e a árvore de Natal.
E foi acendendo os outros fósforos para que a avó não sumisse. Foi tanta luz que parecia dia. E a avó ali, tão bonita, tão bonita. Pegou a menina no colo e voou com ela para onde não fazia frio e não havia fome nem dor. Foram para junto de Deus.
De manhãzinha, as pessoas viram no canto entre duas casas uma menina corada e sorrindo. Estava morta. Tinha morrido de frio na última noite do ano. Nas mãos, uma caixa de fósforos queimados.
-Ela tentou se esquentar, coitadinha. Ninguém podia adivinhar tudo o que ela tinha visto, o brilho, a avó, as alegrias de um ano novo.
sexta-feira, 4 de dezembro de 2009
quinta-feira, 3 de dezembro de 2009
Estás aí ou não?
Uma questão de arrumação (mayflower revisitado)
«Se ontem viram uma pessoa dar uma lição de moral ao arrumador que está em frente ao Beauty Stetik § Spa da Avenida Calouste Gulbenkian, ali em frente ao Mayflower... era eu!
R. tem hora marcada. R. precisa estacionar. R. vê mil sítios. Tenta estacionar. Quando está a iniciar a manobra aparece-lhe o arrumador a bater no vidro e a dar indicações. R. vai embora. R. inicia nova manobra noutro sítio. Arrumador bate-lhe ao vidro. A saga repete-se três vezes. R. está a atrasar-se. Faz a manobra mantendo o olhar SEMPRE desviado do arrumador. R. estaciona que é uma beleza. R. vai pôr moedinha. R. vai pôr papelinho ao carro. R. fecha a porta e está o arrumador em frente a si, com ar de "tudo me deve e ninguém me paga".
R. Olhe, desculpe! Importa-se de me explicar qual é a lógica de estar a arrumar carros num sítio onde os lugares estão marcados e já temos de pagar estacionamento?!
Arrumador (A.) Fazer pela vida!
R. Pela vida, ou pelo vício?!
A. Do que é que tás a falar?
R. Oh homem, diga-me lá... você ainda é novo, não é?
A. Mais ou menos.
R. E tem família?
A. Não querem saber de mim!
R. Ah... e acha que é vindo para aqui arrumar carros que os faz gostarem mais de si?!
A. Mais vale isto do que andar a roubar.
R. Pois, lá isso é verdade. Mas isso é a lógica do "antes rico e com saúde que pobre e doentinho"! Já procurou emprego?
A. Às vezes procuro.
R. Então mas isso não pode ser só às vezes, homem. Tem de ser sempre. Tem de tomar um banhinho, vestir uma roupinha lavadinha e ir à luta.
A. Pois, tem razão.
R. Pois tenho. Olhe lá, você já comeu hoje?
A. Não.
R. Então tome lá (não foi muito, que a crise chega a todos).
A. Obrigada. Olha, sabes que a Câmara vai dar uma licença a quem quiser especializar-se em arrumador. Pagas 20 € por ano e tens a licença.
R. Ai... mau! Então mas não tínhamos chegado a acordo que ia procurar outra vida?!
A. Pois... é só se não der!
R. Olhe, agora tenho mesmo de ir. Veja lá se vai mesmo gastar isso numa refeição quentinha. Se eu sei que junta os trocos para ir à droga, olhe que nunca mais lhe dou nadinha. Sabe que a vida tem muitos cruzamentos. Lá porque errámos a direcção uma vez, não há nada que nos impeça de voltar atrás e refazer o caminho.
A. Posso dizer-te uma coisa: às vezes as pessoas dizem "olha aquele quer uma vida fácil", sem saberem que a vida dele até é mas é muito difícil... Feliz Natal para ti, está bem!
R. Feliz Natal também para si.
...
R. E nada de riscar os carros a quem não dá moeda.
A. Achas?!
R. Vá... Fique bem!
quarta-feira, 2 de dezembro de 2009
The Queen Meryl
Esta mulher transfigura-se, aprende sotaques, chora a rir e ri a chorar.
Um caleidoscópio de emoções e de naturalidade a que dela irrompe em cada pedaço de personagem que compõe.
Vejam-na em Julie and Julia.
Sonata em efe
Um homem chega ao restaurante, senta-se e, acenando com o braço, diz:
>> - Faz favor: frango frito, favas, farinheira...
>> - Acompanhado com quê?
>> - Feijão.
>> - Deseja beber alguma coisa?
>> - Fanta fresca.
>> - Um pãozinho antes da refeição?
>> - Fatias fininhas.
O empregado anota o pedido, já meio intrigado: "o tipo fala tudo com F's!"
Depois do homem terminar a refeição, o empregado pergunta-lhe:
>> - Vai querer sobremesa?
>> - Fruta.
>> - Tem alguma preferência?
>> - Figos.
Depois da sobremesa, o empregado:
>> - Deseja um café?
>> - Forte. Fervendo.
Quando o cliente termina o café:
>> - Então, como estava o cafézinho?
>> - Frio, fraco. Faltou filtrar formiguinha flutuando.
Aí o empregado pensa: "Vamos ver até aonde é que ele vai".
>> - Como é que o senhor se chama?
>> - Fernando Fagundes Faria Filho.
>> - De onde vem?
>> - Faro.
>> - Trabalha?
>> - Fui ferreiro.
>> - Deixou o emprego?
>> - Fui forçado.
>> - Por quê?
>> - Faltou ferro.
>> - E o que é que fazia?
>> - Ferrolhos, ferraduras, facas... ferragens.
>> - Tem um clube favorito?
>> - Fui Famalicense.
>> - E deixou de ser porquê?
>> - Futebol feio , farta.
>> - Qual é o seu clube, agora?
>> - Farense.
>> - O senhor é casado?
>> - Fui.
>> - E sua esposa?
>> - Faleceu.
>> - De quê?
>> - Foram furúnculos, frieiras... ficou fraquinha... finou-se.
O empregado de mesa perde a calma:
>> - Olhe! Se você disser mais 10 palavras começadas com a letra F... não
paga a conta. Pronto!
>> - Formidável, fantástico. Foi fácil ficar freguês falando frases fixes.
O homem levanta-se e dirige-se para a saída, enquanto o empregado ainda
>> lança:
>> - Espere aí! Ainda falta uma!
O homem responde, sem se virar:
>> - Faltava.