Na noite em que a lua foi pisada pela primeira vez,
ainda a preto e branco a sua imagem,
escafandros brancos, o reflexo do sol nas lentes baças,
a escada que descia, o pó sem gravidade que a bota levantou,
tão branco e mágico,
nessa magia de duas da manhã, hora local, daqui,
estavas comigo.
Comemos sopa às quatro da manhã,
e eu vejo ainda aquela sala, a mesa lá ao fundo,
o sofá grande, e eu de onze anos a sentir-me grande,
porque assim me fazias e falavas.
A lua a ser pisada: humana condição
pela primeira vez.
No dia em que as ciências em exame mais longo se faziam,
eu sem saber o grau das equações, que incógnitas havia
a resolver, era Verão e o sol do lado esquerdo,
à esquerda da imagem tripartida à minha frente,
teimando-me a ignorância,
nessa angústia menor de três da tarde,
sabia-te sentado atrás de mim, na carteira de trás,
à espera, atravessado de nervos e ternura.
Passei. E eu vejo ainda o teu sorriso,
o pó sem gravidade no olhar, e eu, quinze anos
a sentir-me grande, porque assim me parecia.
Uma galáxia à solta pelo corpo e o calor do sol
tão transparente.
No dia em que o meu corpo se atravessou de nova dor,
quase rasgado a meio, a luz do sol entrando
pela janela antiga, os tectos altos, brancos,
batas como escafandros,
nesse dia tão longo em que o sol caminhou até ao fim,
para do fim nascer, estiveste sempre lá.
Vejo-te ainda encostado à ombreira dessa porta alta,
a voz dos escafandros tentando sossegar-te,
e tu, a soluçar baixinho, retalhado entre amor
e alegria.
Na noite em que a lua te deixou,
em que deixaste de sentir a sua luz, o mais trémulo toque,
tudo o que assim nos faz: frágil, imensa, humana condição,
na noite dos fantasmas e escafandros cinzentos,
eu não estava contigo.
A que sabia a sopa que comemos?
Que escada de Jacob?
Ana Luísa Amaral, Entre dois rios e outras noites, Campo das Letras, 2007